Valores sagrados, mas sou secular?

Sou, ou creio-me, secular e ateu, e nem por isto deixo de ter princípios e valores, e alguns destes sagrados para mim. Eu sei que o termo sagrado traz em si uma forte imagem mística ou transcendental, mas não é este o sentido de sagrado que sinto e expresso. Sagrado para mim, a bem da clareza, são valores ou princípios que muito amo e respeito, e que para os quais estou disposto a ceder minha vida pela sua defesa. Sagrados são aqueles valores ou princípios que de tão importantes para mim chego a sentir vergonha e certo mal estar quando os questiono, os analiso, os estudo, e assim os coloco sobre cuidados e atenção de minha racional forma de pensar. Mas não é porque sejam sagrados para mim, que quaisquer princípios ou valores podem ficar fora do crivo de uma análise crítica e racional. Mesmo que a princípio me sinta mal nesta análise, são eles totalmente abertos ao escrutínio racional e são ainda, eles, aqueles que merecem maiores, mais profundas e detalhadas análises, porque refletem de forma marcante no como me comporto como humano, e no como me relaciono com a sociedade, pois por eles posso chegar a extremos de matar e de morrer. Um exemplo claro e direto são meus filhos. Classifico-os como aquilo que de mais sagrado tenho, mais até que minha vida, mais até que quaisquer outras vidas. Exatamente por isto, tenho que investir esforço e atenção na busca de compreender melhor o valor sagrado que atribuo a aqueles valores e princípios, ou corro o risco de agir de forma meramente dogmática, fundamentalista ou fanática, algo que repudio nos outros, e que se não me cuidar posso estar repetindo, apenas para valores diferentes.


Assim cabe-me a obrigação de questionar, de analisar e de buscar compreensão: Porque os entendo como sagrados? Mereceriam eles realmente o status de serem sagrados? Até a onde eles são sagrados? E entre si, quando influenciarem um ao outro, ou quando um esbarrar no outro, haverão princípios mais sagrados do que outros para mim? Qual seria, se existe, o mais sagrado de todos para mim? Por que será que outras pessoas possuem outras perspectivas do que seja sagrado para elas? Os meus princípios e valores sagrados seriam, ou poderiam ser realmente mais sagrados que os dos outros? Por que não entendo alguns princípios sagrados dos outros como realmente sagrados para mim? Existiria algum viés de alinhamento, mesmo que sutil, entre o que entendo sagrado e o que irmãos outros em espécie possam entender? E entre os meus próprios valores e princípios sagrados, existiria algum conceito comum que os uma, existiria alguma linha que os divida em escopos e demarcações próprias, eles se sobrepõem? Eles se aniquilam sendo mutuamente exclusivos? Se tiver uma semana para tomar uma decisão, eles continuam sagrados para mim, ou seu valor se dilui com a realidade de cada momento? Se tiver que tomar uma decisão emergencial, quase que instantânea, eles continuam sagrados para mim? Eles seriam mais sagrados na emergência de uma decisão, ou em tomadas de decisões longas, pensadas e planejadas? Existe algo, que em quantidade maior, ganhe valor mais sagrado do que aqueles valores iniciais que vivo como sagrados? (como exemplo deste último caso, entre a vida de um filho meu e a minha, não tenho dúvidas que salvo a vida de um filho meu, agora tenho que encarar uma pergunta que pode parecer utópica, mas que carece de alguma resposta, entre a vida de um filho meu, e por exemplo a cura de todo e qualquer câncer infantil, ainda vale a certeza anterior? E se a comparação for mais física com evitar algum atentado contra uma escola infantil em pleno horário escolar. Se um filho meu se enveredasse pelo mundo do crime e estivesse prestes a fazer um atentado contra aquela escola, e eu pudesse decidir entre matar ele e salvar centenas ou milhares de crianças além dos adultos que lá trabalham, o que decidiria? A decisão seria diferente se tomada de forma emergencial ou de forma planejada?). Tenho de ter respostas conscientes para isto e para todas as questões acima e muitas mais que surgirão no processo de uma análise crítica e racional. Não é justo me eximir de analisar estas possibilidades. E só como posição, por mais sagrado que seja o valor que dou aos meus filhos, naquele caso da escola, a prioridade seria salvar as crianças na escola contra a vida de um filho meu. Isto faz, então, a vida de meus filhos algo vulgar e não sagrado? Absolutamente não, isto me faz apenas mais humano e social, e o social deve, para mim, ser sempre mais importante que o individual, facilitado em muito, neste exemplo, porque aquele filho hipotético não mereceria a classificação de humano e nem de social.

O que me entristece é que com a mesma sinceridade e clareza com que coloco meus valores sagrados sob o escrutínio racional, crítico e lógico, meu ou de qualquer um que deseje fazê-lo, até mesmo para se for o caso abrir mão deles, muitos irmãos se ofendem e se chocam quando penso ou desejo colocar os valores sagrados deles sob o mesmo holofote e microscópio. Eles acham ofensivo e irracional meu desejo, no fundo porque devem possuir medo, medo de que algum de seus valores sagrados não suportem uma análise crítica, outros por que crendo em um ser onisciente podem ficar com medo de represálias deste ser porque ousaram colocar em questão princípios dogmáticos, outros ainda porque se agarraram de tal forma ao dogma de sacralidade dos valores deles que não conseguem imaginar a validade de qualquer análise crítica sobre os mesmos, afinal questões de fé não podem ser escrutinadas racionalmente, devem pensar eles. Mas e daí, eu continuo minha análise por conta própria e conversando com aqueles de mente mais aberta. Faço questão de que meus valores sejam todos criticados e avaliados sob a luz do social e do humano, em especial aqueles valores que entendo como sagrados. Não devemos temer encarar abertamente nossos valores e mesmo entre estes aqueles princípios e valores que entendemos sagrados, podemos descobrir que alguns sequer são valores e outros nada possuem de sagrado na realidade do nosso existir. 

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