Pai

Pai;

Eternamente dividirei com o senhor, enquanto eu existir com o mínimo de saúde mental, partes de minha mente, de meu cérebro, neurônios, bombas de cálcio, sinapses e neurotransmissores. Talvez divida com o senhor meu cérebro, mesmo se vier a perder alguma saúde mental, mesmo que conscientemente perca acesso a estas lembranças, talvez elas povoem minha mente inconsciente enquanto o cérebro possuir alguma funcionalidade, mesma que básica, primária, mas o que importa, agora e sempre, é sentir o quanto foste importante para mim.


Pai, de repente me vi tentando lembrar a primeira lembrança real que guardei de ti, e talvez pela força emocional do fato, é de quando fui atropelado atravessando a rua para ir ter com o senhor. Pixote, sem maiores consciências, nada sabia, eu só sabia que queria ir ter com o senhor. Queria lembrar de antes, não consigo. Defeito? Talvez, mas pouco importa o antes, se não lembro, na prática não me faz falta alguma, pois desde este momento, meu pai faz morada em mim, eu me lembro de ter um pai, eu era agora um filho de verdade, mental e emocionalmente. Mesmo quando muitos familiares não aceitaram, o senhor sempre esteve comigo, aceitando minha caminhada para o materialismo e o ateísmo, pois o senhor sabia que nada mudava em minha linha de amor ao próximo, talvez até mudasse sim, mudasse que agora eu mais ainda amava a vida, a minha, a dos meus e a de todos, pois que agora tinha uma certeza, de que a vida era única, uma única oportunidade para realiza-la. Louvá-la em amor e respeito era mais importante ainda. 

Pai, as últimas lembranças não são agradáveis, o senhor em coma, por um lado dói um bocado, mas por outro isto significa para mim o quanto o senhor foi importante para este aqui. A dor da saudade de tê-lo perdido é sinal vivo do quanto fui feliz com o senhor. Pai meu herói, meu exemplo em muitas coisas, pai, meu amigo, o senhor faz muita falta. Pai me lembro fortemente da última vez em que o vi ter alguma, mínima que seja, reação humana, vi seus olhinhos abrirem muito pouco, vi sua pupila se movimentando, seu dedão se mexer, tenho a impressão de ter visto lágrimas, fico imaginando que o senhor queria falar algo, ou talvez apenas um beijo de despedida física. Como esta imagem é forte em mim, inventada, irreal, desejo puro, não sei, mas sei que sinto sua falta. Queria ser para meus filhos apenas a metade do que o senhor foi para mim e para eles, quantas vezes o senhor atrapalhou sua vida apenas para estar com seus netos, para leva-los a escolinha, para busca-los, para comprar uma bala, um chiclete, e dividir com eles, sua simplicidade era ensinamento puro para mim.

Amanhã é dia dos pais, um dia como outro qualquer, um dia sem nada de especial, pois que um pai jamais será um ser de um dia só, jamais será merecedor de um único dia. Mas pai, apesar de tudo isto, como eu queria estar com o senhor amanhã, abrir uma garrafinha de vinho verde que o senhor tanto gostava, e abraça-lo com a força de que somente pai e filho sabem se abraçar. 

Pai, o senhor hoje descansa insensível a toda a dor, tribulações e loucura do dia a dia, um dia eu também me vou para o mesmo nada que hoje o senhor está, e aos poucos as lembranças que temos dos que se vão a mais tempo se perdem, geração após geração, cada vez mais menos se lembram dos que se foram a várias gerações. Não sei quanto tempo meus textos poderão durar, mas todos que lerem meus textos esbarrarão com textos que mostram que em um tempo viveu meu pai, que um dia um filho triste, mas feliz exatamente pela tristeza que sentia, pois que sentia o quanto tinha sido importante este pai, pensava nele. Pai eu te amo. Pai, na certeza que o senhor não me ouve, na certeza de que nunca mais nos veremos, mas na certeza de que basta fechar meus olhos que o senhor estará vivo em mim, para este pai mental que hoje é meu parceiro, feliz dia dos pais.

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