Meu final feliz
Impossível experimentá-lo a sós, independente da realidade social de que sou também responsável. Impossível viver um verdadeiro e gratificante final feliz, como entendo impossível realizar um viver plenamente feliz, muito também porque acho impossível a perfeição. Consigo experimentar alguns momentos presentes de felicidade, mas sempre incompletos, e sou continuamente resgatado pela imanente realidade social e desumana que oprime, segrega, explora, exclui e degrada a dignidade e a existência humana. Mais ainda, minha pessoal experimentação natural do viver, é ela mesma permeada por momentos de dor, tristeza e sofrimento, isto é normal, isto é a média natural do realizar um viver, qualquer viver.
É irrelevante a minha felicidade? Não, claro que não, nenhuma felicidade é irrelevante, minha ou de quem quer que seja, apenas não pode ser plena, eterna ou perfeita, e não porque eu assim não o queira, mas porque o caos natural da existência extrapola em muito o que desejo, o que possa de mim depender, e o que está constantemente acontecendo.
Toda felicidade é digna? Claro que não. Felicidades conseguida ou obtida, direta ou indiretamente as custas do sofrimento de outros, humanos ou não humanos, é indigna. Felicidade realizada às custas da omissão são também indignas. Entendo vergonhosa a felicidade dos omissos. Entendo maravilhosa a felicidade daqueles que a tenham conseguido verdadeiramente alcançar, mesmo sabendo que é um estado não pleno e passageiro. Entendo repugnante a felicidade daqueles que se escondem por detrás da sua pseudo incapacidade de lutar e participar da transformação do estado social vigente. Entendo obscena a felicidade daqueles que ingenuamente acreditam que os que hoje sofrem, o fazem simplesmente para desfrutar um amanhã transcendentalmente feliz. Entendo indecente a felicidade daqueles que de forma crédula acreditam que toda a realidade de exclusão social seja parte de um plano sistêmico maior e que não nos é possível entender, e por isto nos é impossível questionar, ou mesmo aquelas felicidades dos que culpam os sofredores como causas próprias de seus sofrimentos.
Como ser plenamente feliz vendo a miséria social, cultural e humana, independente desta indigência humana estar fisicamente próxima ou distante de mim. Como ser plenamente feliz vendo crianças sofrendo dores, doenças, fome, abandono, estupro, exploração, e muito mais.
Não creio em destino, motivo ou razão superior para uma existência planejada ou não. Entendo possuir uma única existência, uma única oportunidade de experimentar meu viver. Não tenho segunda chance, nem mesmo segunda época, por isto não preciso colecionar bônus, preciso sim trabalhar na construção de minha dignidade, abrindo portas e dando apoio na dignificação da vida social e natural.
Não necessito de nenhuma razão superior, de nenhum plano sistêmico ou mesmo de nenhum motivo transcendental para viver, ou para valorizar ou direcionar meu viver. Basta-me o amor à vida, em toda a sua essência, humana e não humana, para ter vergonha do que fizemos de nossa sociedade humana. Esta vergonha deveria ser ainda maior posto que sou desta sociedade, um representante.
Como motivo de viver basta-me alguma ousadia de tentar algo contra a destruição da condição humana, basta-me alguma revolta contra o atual estado social de exclusão ou de exploração humana, e mais recentemente somam-se como motivos de viver, meus filhos.
Aos que precisam de algo maior, me curvo, pois bastam-me as coisas menores, naturais e imanentes para me fazer ver a vergonhosa ausência humana com que tratamos a vida neste planeta. Aos que creem em algo depois de nossa existência material, também me curvo, basta-me sentir o presente para florescer em mim a revolta pelo desumano.
Aos que acreditam na esperança, invejo-os, e também me curvo, mas o que percebo é a esperança como maquiagem para a manutenção do atual estado de desumanidade. Curvo-me assim aos esperançosos, entretanto a natureza não me deu inteligência para entender além do que racionalmente e criticamente percebo, e assim sou um “desesperançoso”, nunca um desesperado. Talvez por incompetência ou por inaptidão, não consigo ter nenhum apreço pela esperança. Entendo que não possuo domínio sobre o presente futuro, pois realizamos apenas o contínuo espaço temporal do momento presente, é nele onde posso agir. A vida ousa-me mostrar que é somente no instante do agora que posso existir e atuar. Uma vez que somente realizo meu viver no presente, e mesmo assim sem controle absoluto sobre ele, este me obriga a trabalhar, não a esperar, este me obriga a planejar, não a ter esperanças, este me obriga a realizar, a buscar a tentar, e em alguns casos a esperar, mas não a ter esperanças, este me obriga a transformar, este me obriga enfim a me despir de esperança e a me vestir de ousadia e de vontade.
Se 500 vezes o castelo de minha construção desmoronar, 501 vezes devo tentar reconstrui-lo, não apenas por mim, ou pela vaidade de fazê-lo, mas sim em nome de todos aqueles que precisem deste castelo para encontrar um pouco de dignidade humana e de satisfação social, incluindo eu mesmo e os que me são importantes.
E se o Castelo não desabar, que bom. Devo partir para novas construções e transformações. Devo tentar abrir estradas, caminhos para inclusão social. Devo construir portos para que vidas humanas possam ali ancorar, para que vidas não humanas possam ali florescer e libertas viverem. Devo caminhar pela realização emergencial do viver, devo trabalhar pela essência da vida, não somente da minha vida ou pela vida de meus filhos, nem somente devo trabalhar pela vida de meus familiares ou amigos, em última análise nem mesmo somente pela vida humana, devo trabalhar com vontade pela essência da vida, em todo o seu esplendor imanente.
Nos momentos em que a escolha seja necessária, devo ter a capacidade de escolher pelas obras e construções que maximizem a dignidade da vida, por um maior número de seres, por uma maior área geográfica e por um maior espaço de tempo possível, independente de espécie, raça, cor, nacionalidade, crenças, condição social, orientação sexual ou mesmo princípios filosóficos.
Por definição respeito a vida, e por isto respeito os seres humanos e não humanos, respeito os que comigo comungam, ou mesmo os que de mim discordam, respeito os crentes, respeito os que buscam ou acreditam em uma razão superior, respeito os que acreditam em vida depois da morte, respeito os que depositam valores na esperança, simplesmente por que são seres humanos e merecem respeito por isto, mas ouso não concordar com suas argumentações.
Meu final feliz, nunca será pleno, mas posso ter um final algo consciente de que tentei, de que ousei, certo ou erradamente construir alguma felicidade um pouco mais abrangente do que a minha própria, e quem sabe até ter conseguido deixar alguns exemplos, poucos que fossem, mas que pudessem ajudar na elevação do valor da vida.
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Sou um ateu racional e um livre pensador, ou melhor, eu sou um ateu que tenta ser (que se compromete a ser) racional e livre pensador.
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